domingo, 27 de julho de 2008

História cabeluda


O fato de ter havido uma mulher no mundo que comia cabelos, tantos que punha em risco a própria vida, não poderia deixar de ser algo significante, até de uma coisa além de sua própria miséria pessoal. Associo injustamente a coitada ao caso bem mais grotesco de um homem que sofria (ou fazia sofrer) de canibalismo e que localizava o início da mania no hábito que tinha de, quando criança, matar passarinhos e, depois de torrá-los, comê-los.

Imagine o dia em que a mulher de que vos falo descobriu que podia comer os próprios cabelos. Era já uma senhora ou criança carente de alfabetos morais? Teria sido um dia de sol? Estava sozinha e isto lhe surgiu como uma dádiva? Contou para a sua melhor amiga? A amiga também provou do próprio cabelo?

Por extrapolação, poderia falar de muito mais que uma mulher comendo o próprio cabelo. Estamos falando aqui de rituais. E por que não localizar os mesmos mecanismos simbólicos do exemplo pitoresco nos atos simplórios de todos nós, que só comemos uns aos outros no sentido figurado? De certo que o canibal e alguém que come cabelos não é tão fiel representante da realidade da maioria dos seres humanos. Mas, meu deus, comer cabelos não é uma atividade humana? Toda ela cheia de humanidade?

É que nossa sociedade (a qual não tenho coragem de adjetivar com nenhum termo) não tem muitos rituais fielmente catalogados e considerados, até, como tais. Precisaríamos de uma raça de ETs esforçados e pacientes para fazer esse trabalho, de alguém que vivesse de um outro modo e não ignorasse totalmente a estranheza e tribalismo do que somos detrás das milhões de janelinhas ora acesas, ora apagadas, olhos da urbe.

Cortar o cabelo, tomando o mote de onde começamos, podia ser considerado o nosso ritual de iniciação em novas vidas, de manipulação do próprio corpo, estranho sobrevivente quiçá (e aqui lamento não citar nenhum estudo antropológico) da escuridão das cavernas ancestrais. Comê-lo, bem, seria apenas uma demonstração de como isto significa para todos nós, só que até o infinito.

Eu era loiro. Isto de perder a cor dos cabelos acontece com muita gente, pelo que ouvi falar. Talvez por não achar a Escandinávia, alguns olhos e cabelos cearenses escurecem. Disto retiro o que passo a relatar, a lenda pessoal e familiar em torno deste fato, criada por impressões da minha mãe, fundamentadas na matutice que nem ela acredita, mas que é bom sempre ter por perto.

Cortei o cabelo, segundo parece, com um homem de mão ruim, mão escurecedora de cabelos. A inveja que almejavam meus pais todos tivessem de mim somada à infeliz mão do cabelereiro me retiraram de um mundo de loirice eterna.

Não bastasse isto, aliás, era aquela a primeira vez que cortava o cabelo, as longas madeixas encaracoladas e douradas, que me davam um tom angelical de engordar os olhos. Anjos, porém, não tem sexo, e a androginia da minha aparência, na época, causava constrangimentos infantis nos meus adultos pais, daí a urgência da medida expurgadora de cachinhos.

Entrava, naquele momento, no mundo de masculinidade rarefeita dos meninos que deixaram de ser bebês. A ocasião mereceu foto. Minha mãe, tão cheia de datas, mas com minha mesma frágil memória, guardou aquele momento, e meus tantos outros ritos de passagem até quando nem eu mesmo sentia a diferença entre antes e depois deles. Certo é que, falando disso, me emociono, de alguma forma, e me lembro de como sou importante e faço parte do grande almanaque de superstições e historietas que constroem uma cidade.

E daí? Bem, vamos valorizar os pequenos gestos, invocadores das nossas origens mais símias e belas, ou vamos esperar que comam cabelos ou que nos comam, no mau sentido? O homem só funciona com mitologias, mesmo que ainda não as reconheça. Quantos, por falta de algo do gênero, não se perderam por aí, pobres índios sem pajés, banhando-se na chuva sem antes dançá-la?

3 comentários:

Thalita Castello Branco Fontenele disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
bruno reis disse...

acho que já ouvi falar que isso de comer cabelos era uma síndrome(apesar de aparentemente todo comportamento humano, por mais singular, tem uma síndrome correspondente). é engraçado isso de cortar cabelos, tem isso de passagem mas também de baixar uma persona. pintar o cabelo, idem =p

mas sim, engraçado isso de você falar sobre tuas coisas, sendo que a gente tinha conversado sobre aquilo de você não fantasiar muito tua vida, sendo que esse é justamente um texto sobre mitos \o

não é ironia, mas é engraçado :)

Aline Ribeiro disse...

isso de comer cabelos é uma doença.
tem tratamento, e é muito dificiu de controlar, chega a por em risco a vida das pessoas com essa "sindrome".