Um dos prováveis sinais de que se está ultrapassando o limiar de um novo tempo (ou “fase da vida”, como se houvesse uma ordem linear em marcha) é quando a atual impressão que temos do passado difere quase totalmente daquela de quando ali estávamos. Como o passado de que falo não ultrapassa duas décadas, tenho nítida lembrança do que realmente ocorreu e do que a partir daquilo refletia, coisa que, aliás, me acostumei a fazer desde muito cedo.
De início, pensava que a infância e a adolescência não me eram tão boas quanto deveriam, ou quanto eu merecia. Tantos os percalços e as frustrações que talvez houvesse o destino exagerado em me ensinar algo que já perdera o sentido. Hoje, tenho a sorte sazonal de rever algumas pessoas que passaram (o que, no inglês, é algo como morrer), de revisitar na memória uma página de um dos primeiros livros que eu li, a cor do céu quando chovia e o modo como os bueiros, no Benfica, àquela hora, regurgitavam o esgoto. Lembro-me agora de um beijo, de uma ambição, da minha caligrafia que piorava a cada ano escolar.
Já fui invencível? Me questiono, impressionado, crendo que sim. Pode ser isto uma tática complacência com o irreversível, protegendo-me para o futuro próximo, como uma multidão em fuga se desfaz do que pode pesar na viagem. Talvez. Mas se é tudo proteção ou supressão, por que a saudade? E por que se unem tão insistentemente os tormentos e as alegrias, como se fossem uma coisa só?