segunda-feira, 23 de agosto de 2010

LITERATURA BRASILEIRA



Eu tenho um tio escritor. Todos que me conhecem sabem disso: é o Pedro Salgueiro, contista e cronista. Ele que disse, uma vez em que nos encontramos, que não faz tanto sentido se ocupar em falar mal dos livros dos outros. Não concordo inteiramente com essa conclusão, por sinal considero esse tipo de noção até prejudicial para o desenvolvimento de uma verdadeira crítica literária fora e dentro das universidades. Afinal, se um crítico analisa seu livro, a possibilidade de ele falar mal não deveria, em condições ideiais, ser a priori descartada. Porém, na situação em que estamos, a coisa muda de figura. Vivemos numa situação que considero emergencial. É fato que a literatura brasileira contemporânea não é lida em massa, e nisso não vejo nada de alarmante. O que me decepciona é que não temos (nós, os leitores) o costume de procurar os autores do Brasil de hoje e, mais importante, comprar seus caros livros, ainda que tenhamos dinheiro.

Não me incomoda se são poucos os leitores de literatura. Arte é arte, leitura é outra coisa. Certa vez ouvi um representante do governo estadual dizer que tudo é leitura, o que me fez na época imaginar que poderíamos contabilizar até as placas de trânsito não-verbais. Claro que aí seria exagero, e flexibilizar demais a contagem de leitores só serve para forjar estatísticas mais agradáveis. Mas há algo de verdadeiro nisso: a leitura não se fecha na grande arte literarária, e muito embora pareça esta essencial para um povo, paradoxalmente o indivíduo parece prescindir dela para viver. Alguns, contudo, por qualquer razão, se interessam pela literatura com L maiúsculo. Estes tem acesso às grandes revoluções da linguagem, a interpretações ousadas de sua sociedade, à exposição dos próprios medos e prazeres. A fonte eterna das palavras jorra para eles, basta estender as mãos.

Esta fonte é sem etnia, sem nome. Ela não é língua, é linguagem. Ela parece fazer sentido em qualquer meio social, porque ela própria é um meio social. Nele entramos sem passaporte. Contudo, dizer que não levamos conosco a cultura do mundo dividido em fronteiras é pura ingenuidade. Pelo contrário, a literatura burla todas as fronteiras principalmente quando as anuncia e denuncia. O mundo dividido em países e povos faz sentido de um modo diverso. Infelizmente, nós, brasileiros, condenamos nossos escritores à pena de depósito eterno, ainda que tanto nos tenham a falar sobre nós mesmos, inclusive aquilo que deveríamos dispensar em nós, ou talvez podendo com mais capacidade nos falar sobre aquilo que somos ao ler Tolstói ou Huxley. Por isso, prometi a mim mesmo que este ano de 2010 lerei autores do Brasil contemporâneo e quando puder escreverei sobre aqueles de que gostei e que, para mim, vale a pena ler. Meu tempo é tão reduzido, minha paciência tão pouca e a urgência tão grande que não me ocuparei de falar mal de ninguém. Somente falarei sobre os livros que gostei. É o mínimo que poderia fazer para trilhar um caminho de leituras para mim e para quase todos bastante obscuro, mas necessário.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

ANO DO TIGRE



Nunca entendi quantos dias tem o ano chinês, ou de quanto em quanto tempo os bichos se repetem na roleta dos séculos. Lembro da primeira vez em que eu soube que em algum lugar do mundo havia um outro zoodíaco. Era num livro, quase-panfleto de papel jornal, que talvez vendesse em bancas comuns. A cor da capa era preta porque era um escuro céu estrelado, fotografado pelos Deuses ou pelos satélites. Quiromancia, tarot, horóscopo, tudo muito fácil. O mundo, ao contrário do que me ensinavam no colégio, não era divino: era mágico.

Hoje em dia, é mais divertido e alentador pensar que o mundo é governado pelas forças cósmicas do que pelo espírito mundano das nossas necessidades por conforto, nossa sede, nossa ética católica e sem Deus. A promessas paradoxais do ano de grandes felicidades e grandes tormentos não surpreendem a colheita agroindustrial, que se rege pela mesmas regras que nos submetem a algo que podemos e sempre poderemos resistir. Esta opção melhorou alguma coisa? Parece que não. Antes pelo menos nós sabíamos, ainda que enganados, o bicho que estávamos montando.

No fim das contas, o ano do tigre é uma efeméride casual, aproveitada por místicos um pouco falidos, esperançosos por um programa de televisão que queira incluí-los em pauta. Mas também pode ter algum significado para as pessoas que, como eu, tem 20 e poucos anos. Além das festas de mal gosto, para esta faixa-etária também se oferece o trágico fim da adolescência, repetidas vezes e sempre repentinamente, um pouco como ocorre com os vilões dos filmes de terror. Lutando burocraticamente, nos tempos livres a minha geração olha o chão e tenta ver se o dorso do mundo é listrado, se tem pêlos onde se agarrar.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A RAZÃO NO JARDIM



Um dia desses vi uma peça bastante interessante. Começava mais ou menos com descrições teóricas a respeito da racionalidade, da técnica, do modo de produção capitalista. O único que reconheci foi o comecinho da Crítica da Razão Pura de Kant, em que se descreve a diferença entre entendimento e sensibilidade, atributos da razão humana no conhecer do mundo que não podem ser dissociados, ainda que por “sensibilidade” Kant queira dizer algo muito mais primário, que é o atributo de podermos formular sensações a partir de nosso contato com os objetos e o entendimento, por sua vez, nada mais do que organizá-las em conceitos.

Mas a peça e o título da peça falavam da guerra. A peça chamava-se "Guerra Cega Simplex Feche os Olhos e Voe ou Guerra Malvada", apresentada pelo Coletivo Bruto, de São Paulo. Era formada por histórias entrecortadas, das quais me lembro mais firmemente da história do garoto Simplexo, que foge da Guerra dos Trinta Anos, na Europa; a história de uma bailarina cega; a história de um casal de judeus que sobreviveu a campos de concentração nazistas. Minha pergunta é: teria isto algo a ver com Kant?

Como todo o tom da peça, inclusive em partes que são bastante graves, o pessoal do Coletivo Bruto colocou muito humor e aproveitou para fazer graça também do falecido Kant, que, embora quisesse reclamar uma razão universal e uma moral válida para todos os seres racionais, mal pisara fora de sua aldeia. No fim das contas, Kant acaba cego, cuidando do jardim e pedindo a outros que lessem relatos de viajantes. Um vídeo mostra uma atriz fantasiada com uma máscara de Kant Cego (algo como a Kátia Cega) cuidando do jardim ao fim da vida.

Enquanto isso, outro ator, sentado a uma mesa organiza instrumentos cortantes e com eles corta bananas de um cacho até montar um bonequinho. Eis o homem. A narração, se não me engano, é aí que muda: passa-se a ler um texto em que se fala do capitalismo como uma situação em que o indivíduo nada influi, que sobrevive somente através de crises constantes, cuja forma mais aguda é a guerra. A ciência em si e seu desenvolvimento, ainda de memória tento lembrar, de nada servem para superar este estado de coisas. O homem na mesa já estraçalhou o bonequinho de banana. Depois iria oferecer a banana amassada para a platéia.

O pobre Kant, ingênuo e cego, no final da vida, talvez fosse nossa ingênua razão sempre impotente diante do mundo? Parece que não. Uma companhia de teatro que leva um filósofo a tira-colo não pode descrer tanto assim no pensamento (falo de Luiz Henrique Lopes dos Santos, ator e professor da USP). Talvez, bem melhor, estivéssemos criticando uma razão que se contenta em ser um instrumental neutro dos indivíduos isolados, o qual, cego à alteridade e à solidariedade coletiva, serve tanto para construir o conceito de homem como para negá-lo e destruí-lo.

Desse modo, como sugere a peça, vivemos como na tragédia grega, pois agir de acordo com nossa racionalidade nos obriga a suportar conseqüências indesejadas e inesperadas. É como se só escolhêssemos os meios, nunca os fins. Mas isto não deve querer dizer que o ser humano deve esquecer a razão. Basta que a razão abra os olhos, ou melhor: basta que abramos nossos olhos e percebamos que só enxergamos o mundo de modo completo em parceria com os olhares alheios. Se nossa razão passeia cega e só cuida de jardinagem, a quem deixamos a moral, a política, o pensamento? A quem mais deixaremos o nosso futuro?