quinta-feira, 21 de maio de 2009

TENTATIVA


Hoje à tarde estive tentando me lembrar do conteúdo exato do inciso 2º do artigo 14 do Código Penal, o qual, agora sei, diz que a tentativa de um crime ocorre “quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Não estava, até então, muito preocupado com o que tenho ouvido falar do Direito Penal. Aliás, nem Locke estava muito em minha preocupação, quando pensei, ainda ofegante e com as pernas tremendo, que, para ele, posso matar um assaltante mesmo que ele somente queira de mim dinheiro ou um pedaço de pão, porque ele ao me assaltar me toma a liberdade: e quem me rouba a liberdade, todo o resto me pode tirar.

O fato é que tentaram, hoje, me assaltar. Na verdade, creio que me assaltaram, só não conseguiram tomar qualquer bem em minha posse. Isso porque eu corri. O pior: eu não só corri, como desesperadamente gritei. E gritei em um tom e força que eu somente havia gritado em sonhos, de uma forma que eu comumente não tenho consciência que posso gritar. E foi grito puro e seco, um “a” rouco e ininterrupto. Como está claro, não o fiz por vontade: foi o instinto que me chamou, ingenuamente.

Nem Locke, nem o Código. Me lembrei muito foi de Hobbes, que disse se orgulhar de ter sido o primeiro a fugir quando ameaçava eclodir a Guerra Civil na Inglaterra. Creio que ele não fuigiu, como eu, ridiculamente correndo e gritando, mas, como ele, eu fugi como um “homem de coragem feminina” (Capítulo XXI do Leviatã), ao qual é dado nada menos que o direito humano de ser fraco, de ser civil, de temer. Como Locke, Hobbes me dá a chance de matar o ladrão. Diferente de Locke, reconhece no ladrão a mesma humanidade desesperada e ofegante que há em mim, e diz que é ético que ele fuja, que ele mate e tudo o mais, se tentarem tirar dele a liberdade que ele tirou de mim. Ou sua vida.

Ocorre que ao contrário de outros utopistas, a Utopia hobbesiana se baseia ao mesmo tempo na esperança na razão humana e na desesperança quanto à natureza humana. O homem é fraco, se mija todo, corre e grita. Não todos é claro, mas ao menos o homem comum, ao qual não pode se pedir mais do que sua capacidade moral e física. É desse homem, contudo, que surge a vontade de sair da condição miserável de guerra e iniciar algo novo. Ruim que seja: mas melhor.

Talvez meu algoz não se trate de "homem comum". Talvez seja pessoa de coragem, ou mais um covarde. Um niilista, de certo. Mas, como sempre me faz pensar, imagino que juventude é essa nossa (minha e dele), que precisa enxergar toda sua fraqueza e decadência em momentos como este e, logo por isso, ter alguma esperança. Quiçá eu tenha sido somente motivo de riso dele, por hoje, ou vergonha, pelo fato de que ele tinha tudo para me roubar (exceto uma arma) e não conseguiu por circunstâncias alheias a sua vontade. E digo mais: alheias a minha também.

domingo, 10 de maio de 2009

O MÁXIMO


“O nosso lar/ desmoronou/ meu sabiá / meu violão”, o rádio cantava na sala da frente ecoando pelo longo corredor da minha adolescência. Hoje só falta um membro daquele conchavo que éramos nós.

Minha mãe por biologia se concentra em limpar um pequeno prato e, mirando o ralo, esconde o rosto. À mesa, sentada , minha mãe contratual, a ama, a empregada doméstica, extirpada de nós pela doença, como o câncer que extirpamos dela. Como o seu útero, extirpada.

Ela também olhava em direção a minha mãe e, somente por isso, ocultava o rosto. Suas expressões não eram importantes ali, mas Magritte era. Não é nada que só vejamos a nuca de quem amamos, privados de uma face, com medo de esquecê-la. Pior são eles, que não se vêem a si mesmos, por que a imagem do espelho lhes virou as costas, como a parede de azulejos que se fez opaca. E o máximo que fiz foi escrever um texto.