segunda-feira, 16 de maio de 2011

"MEMORIAL BÁRBARA DE ALENCAR" DO POETA DE MEIA-TIGELA


"Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas", do Poeta de Meia-Tigela, é pra se ler por inteiro e na ordem. Acho que meu maior erro foi ter lido pela primeira vez do jeito errado, como se fosse possível ler o romance pelo capítulo do meio. Agora foi que percebi com mais firmeza a forma desse cordel solar, de amarelo que mistura a cor da terra com a cor da gente da terra. Só assim para perceber rima e o estilo desafiando o leitor progressivamente a imaginar os limites da fôrma, ultrapassáveis. A luta em cada espaço do poema, poemas que falam dos heróis e de batalhas, de mitos e dos lugares onde nascem as bocas que alimentam esses mitos. São poemas-praça, onde se fazem forrós e comícios, onde a vida dá tapa na cara, mas também recebe.

Cada estória convida a imitar aqueles que agiram, formando acrósticos com seus nomes. E cada nome é como um mantra, que quer fazer o meditante obter a consciência de alguma coisa que se perdeu porque pensamos demais ou de menos. O Memorial, peça principal do livro, conta a história de uma Bárbara de Alencar valente e desafiadora, cuja revolta do clã (dos liberais Alencares contra o Império) é tão sua quanto de qualquer dos parentes do sexo masculino. A coragem de enfrentar até o fim a vida sem dignidade do cativeiro e depois a grave desilusão com a amizade daqueles que agora não a tratavam mais como iguais fazem Dona Bárbara uma intrigante personagem que, fiel a si mesma, luta pelo Brasil. No final das contas, fiel ao Brasil, luta por si mesma. Figura cuja face não foi eternizada, fez seu próprio autorretrato, com os atos e a porfia:


"Não teve a face retida

Ao menos delineada

Nenhum pobre esboço, nada

Que a fizesse conhecida.


(…)


Se esteve obscurecida

Ei-la agora revelada

Nítida, autorretratada

Nas dores de sua vida."

O livro também contem outros poemas, de mesma estirpe e estilo. Um dedicado ao cinema de Glauber Rocha, outro uma interessante adaptação para poema do curto e grosso Manual do Guerrilheiro de Carlos Marighella, e até mesmo um outro sobre o filósofo Farias Brito, que enfrenta com táticas de guerrilha os erros da Providência divina e humana. são alguns dos poemas. No final, dois poemas utópicos, um se trata da construção ideal da própria Utopia como um lugar, o outro da revelação apocalíptica da destruição do Ceará injusto, a vista de um outro melhor, levada a cabo pelos artistas e heróis do Estado.

O Poeta de Meia-Tigela usa como instrumento o modo de fazer poema da nossa gente, rimado e agreste, para tratar da temática ressequida e espinhosa da luta e da coragem de ser o que se é. Contra a injustiça, contra a miséria, a esperteza do guerrilheiro permite a coragem de lutar e de filosofar. Talvez como José de Alencar e os românticos, o Poeta quer fundar conscientemente o Ceará guerreiro em suas bases espirituais. Este novo Ceará só é possível com o material bem velho que se esconde no riso moleque tão farto por aqui, mas geralmente cínico e conservador. Quem ri assim quer rir sempre mais alto, por último e com a maioria, tentando encobrir a sagacidade dos corajosos Malazartes, que riem das mazelas, mas riem com Arte guerreira, que quer mudança.

domingo, 8 de maio de 2011

A TEORIA DO FUNIL (de cabeça pra baixo)


Uma das aulas que me causou mais impressão na vida foi uma que tive na 4ª série do fundamental. Pensando bem agora, talvez eu tivesse 11 anos na época. Da aula mesmo, em si, nada eu lembro, mas de uma pequena exposição da professora, dada em um momento de aparente desespero pela falta de atenção da infernal turminha em que me haviam colocado, recém-saído de um colégio bem menor e mais calmo. A baderna era geral, e a turba dos meus coleguinhas não dava sinal de parar. Eu, como sempre, nada falava, até porque não tinha vontade; se tivesse, não tinha com quem.



Essa professora, então, para tomar as rédeas da situação, resolveu, olha só, argumentar. E o seu argumento para calar a boca e prestar atenção na aula era a teoria do funil. Ganhando momentaneamente a atenção dos alunos, ela desenhou dois traços em direções convergentes, como as paredes de um funil. Antes que os traços se encontrassem, ela fez dois traços paralelos, formando um pequeno bico, de espessura muito fina. Apontando, então, a boca do funil, ela nos disse: "Vocês devem se concentrar, gente, porque a vida é como um funil". "Vocês agora estão aqui", marcando-nos com um riscado de giz. "Mas, depois, o funil vai diminuindo, e aí só vai conseguir o que quer quem conseguir passar pelo bico do funil". Enquanto falava, fez então uma seta apontando os privilegiados no biquinho fino do funil.



Eu tinha uma qualidade que meus outros colegas não tinham: eu sabia que uma pessoa mais velha poderia me ensinar alguma coisa. Pena que talvez a lição não fosse assim tão correta, ou que talvez eu não tenha lidado tão bem com ela. Lembro de como o desenho me impressionou. O começo do funil, larguíssimo, cabia todos os alunos da sala, do colégio inteiro, talvez do Ceará todo. Já o bico do funil era irremediavelmente pequeno. Tentei até pensar que não era tão pequeno assim. Achei até que tinha sido de alguma forma calculado para parecer de um tamanho mediano, para não fazer da tarefa de passar por lá algo impossível.



Não era difícil alimentar minha neurose. Muito estresse depois, e um percurso estudantil com mais vitória que derrotas, fico pensando em como vão meus ex-colegas, daquela sala. Certamente muito bem, obrigado. A maioria deles da classe média, ou classe média alta. Quem realmente conseguiu passar em vestibulares para escolas públicas? Talvez poucos da minha sala. Não tenho ideia do número, mas ao menos no Direito, não lembro de nenhum (o que já prova alguma coisa, já que quase todo mundo quer fazer Direito hoje em dia). Não ficaram, contudo, sem Faculdade. Só pagaram algo a mais. Quer saber? Nosso funil está de cabeça pra baixo. A seleção é na hora do nascimento. Depois é até difícil, vá lá. Mas a parte pior já passou.