quarta-feira, 7 de julho de 2010

A RAZÃO NO JARDIM



Um dia desses vi uma peça bastante interessante. Começava mais ou menos com descrições teóricas a respeito da racionalidade, da técnica, do modo de produção capitalista. O único que reconheci foi o comecinho da Crítica da Razão Pura de Kant, em que se descreve a diferença entre entendimento e sensibilidade, atributos da razão humana no conhecer do mundo que não podem ser dissociados, ainda que por “sensibilidade” Kant queira dizer algo muito mais primário, que é o atributo de podermos formular sensações a partir de nosso contato com os objetos e o entendimento, por sua vez, nada mais do que organizá-las em conceitos.

Mas a peça e o título da peça falavam da guerra. A peça chamava-se "Guerra Cega Simplex Feche os Olhos e Voe ou Guerra Malvada", apresentada pelo Coletivo Bruto, de São Paulo. Era formada por histórias entrecortadas, das quais me lembro mais firmemente da história do garoto Simplexo, que foge da Guerra dos Trinta Anos, na Europa; a história de uma bailarina cega; a história de um casal de judeus que sobreviveu a campos de concentração nazistas. Minha pergunta é: teria isto algo a ver com Kant?

Como todo o tom da peça, inclusive em partes que são bastante graves, o pessoal do Coletivo Bruto colocou muito humor e aproveitou para fazer graça também do falecido Kant, que, embora quisesse reclamar uma razão universal e uma moral válida para todos os seres racionais, mal pisara fora de sua aldeia. No fim das contas, Kant acaba cego, cuidando do jardim e pedindo a outros que lessem relatos de viajantes. Um vídeo mostra uma atriz fantasiada com uma máscara de Kant Cego (algo como a Kátia Cega) cuidando do jardim ao fim da vida.

Enquanto isso, outro ator, sentado a uma mesa organiza instrumentos cortantes e com eles corta bananas de um cacho até montar um bonequinho. Eis o homem. A narração, se não me engano, é aí que muda: passa-se a ler um texto em que se fala do capitalismo como uma situação em que o indivíduo nada influi, que sobrevive somente através de crises constantes, cuja forma mais aguda é a guerra. A ciência em si e seu desenvolvimento, ainda de memória tento lembrar, de nada servem para superar este estado de coisas. O homem na mesa já estraçalhou o bonequinho de banana. Depois iria oferecer a banana amassada para a platéia.

O pobre Kant, ingênuo e cego, no final da vida, talvez fosse nossa ingênua razão sempre impotente diante do mundo? Parece que não. Uma companhia de teatro que leva um filósofo a tira-colo não pode descrer tanto assim no pensamento (falo de Luiz Henrique Lopes dos Santos, ator e professor da USP). Talvez, bem melhor, estivéssemos criticando uma razão que se contenta em ser um instrumental neutro dos indivíduos isolados, o qual, cego à alteridade e à solidariedade coletiva, serve tanto para construir o conceito de homem como para negá-lo e destruí-lo.

Desse modo, como sugere a peça, vivemos como na tragédia grega, pois agir de acordo com nossa racionalidade nos obriga a suportar conseqüências indesejadas e inesperadas. É como se só escolhêssemos os meios, nunca os fins. Mas isto não deve querer dizer que o ser humano deve esquecer a razão. Basta que a razão abra os olhos, ou melhor: basta que abramos nossos olhos e percebamos que só enxergamos o mundo de modo completo em parceria com os olhares alheios. Se nossa razão passeia cega e só cuida de jardinagem, a quem deixamos a moral, a política, o pensamento? A quem mais deixaremos o nosso futuro?