domingo, 30 de outubro de 2011

O VISITANTE ALIENÍGENA

Um dos sucessos entre as propostas de redação do ensino fundamental (e até médio) era, sem dúvida, a redação sobre o visitante alienígena. A hipótese de um visitante de outro planeta cria marketing, revistas especializadas e, às vezes, até igrejas. Eu não lembro bem o que eu respondia na época. Talvez falasse dos males da terra, da fome, da miséria e, algo que na época não estava tão na moda, os riscos ao meio ambiente. De todo modo, creio que a proposta pedagógica se cumpria: de fato, se pensarmos bem, todos temos algo a dizer a um E.T., no caso de não corrermos com medo dele.

Hoje eu me sinto um pouco como o visitante alienígena, a olhar o mundo com estranheza e espanto, como se tivesse vindo de muito, muito longe. Por onde ando vejo sentimentos contraditórios, amor e ódio, esperança e desespero, e pessoas de todas opiniões e credos tentando esclarecer e mapear a ordem implícita de tudo, ou o caos explícito de tudo. Os hábitos humanos me alegram e me enojam, me enchem de medo e de carinho. O dinheiro se alastra sobre tudo, mas cada mão humana que o pega carrega algo de bom. As prisões crescem e prosperam, mas em cada mente humana há o espaço do perdão.

Hoje eu, o visitante alienígena, olho para mim mesmo, este ser humano, que me parece tão alheio. Olho com curiosidade seus hábitos, sua dor de barriga antes de fazer provas e apresentações públicas, sua falta de paciência consigo mesmo, seu jeito engraçado de rir, sua autocomiseração. Olho como se me houvessem dado ele de presente, como se ele fosse meu refém. Mas não sou do tipo de alienígena que faz grosseiras experiências. Além do mais, não há aqui muito o que avaliar, medir ou quantificar: deste ser já se sabe muito, desde muito tempo. Agora quero despedir-me dele. Se ele for embora, para onde vai? E eu, para onde vou?

terça-feira, 25 de outubro de 2011

POR QUE NÃO?



Na Alemanha, decidiram recentemente sobre o uso de embriões humanos em pequisas; no Brasil já haviam decidido há algum tempo. A idéia, como se sabe, é buscar células tronco totipotentes, tornando o ser humano capaz de, um dia, criar célular específicas ou órgãos inteiros. Já hoje de manhã eu vi um vídeo sobre uma pesquisa israelense que achou um modo de um círculo formado de um supercondutor (envolvido com alguns outros materiais e esfriado com nitrogênio líquido) simplesmente levitar no ar quando posto em cima de um campo magnético. A explicação é que o material resfriado consegue prender o campo magnético por debaixo dele. Há umas semanas vi outro vídeo, de um equipamento que não é novo, que, se implantado no cérebro, consegue curar casos graves de depressão profunda e mal de parkinson, fazendo lembrar um outro, que também já não é novidade, que cura casos de surdez. Ambos já são vendidos comercialmente.
Eu por minha parte tento aproveitar esses novos tempos do meu modo. Não tenho tanta predileção pelos equipamentos eletrônicos, mas já pensei em comprar um video game da moda, para os momentos de tédio. O computador já tenho há tempos e utilizo a internet desde os 12. Fortaleza há muito tempo oferece bons cursos: assim, divido o meu tempo aproveitando aulas na UFC, com seus vários professores doutores, e aprendo alemão, lingua que se duvidar nem os alemães entendem direito, mas que muitos brasileiros (inclusive eu mesmo) tentam enfrentar. O inglês e o espanhol também desafiam, mas fiz cursos e acesso sempre que posso materiais disponíveis muito facilmente. Tenho ambições: estudar lógica, descobrir a relação entre ética, política e ciências (humanas e naturais), ler Hegel, ler Marx. Talvez responder a uma pergunta básica: por que estudar filosofia, se o que queremos é transformar o mundo?
Domingo passado, este filho de seu tempo, mas também de sua classe média, resolveu enfrentar o medo justificado de sair domingo à tarde pela vizinhança de seu suburbano bairro. Ainda que tudo dissesse o contrário, resolveu pensar que a Escandinávia estava em seu coração, e que um pouco de pensamento positivo não faria mal. Foi então que um outro cidadão brasileiro, provavelmente mais velho, passando com sua bicicleta, resolveu assaltá-lo. Este rapaz, que não acessa o youtube atrás de supercondutores ou palestras sobre Hegel, talvez tenha uma vida que, como se diz, "daria um filme", com sua dose de pobreza, drogas, sexo e violência. O certo é que enquanto um vive na Suécia, o outro vive num filme do Tarantino, rodado em Gana. Por que não cobrar pedágio do estrangeiro, quando ele passa a fronteira?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

FELICIDADE


Se entendi bem a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, a discussão sobre a felicidade entre os gregos tinha dentre as posições mais aceitáveis aquela de que felicidade significa somente aquele momento em que, no fim da vida, um homem vê o todo de sua existência e conclui que ela foi uma realização completa de suas potencialidades, virtudes e riquezas. Se uma vida humana durasse 60 anos, digamos, talvez a felicidade custasse a última semana, no leito de morte, ou, mais tragicamente, o último segundo. O tempo preciso para ter certeza de que a vida foi boa e não pode piorar, porque não há mais tempo para isso.

A ideia é um pouco estranha para nossa consciência moderna. Para nós (e desculpem-me a ousadia de falar por todos) a felicidade seria um estado duradouro de prazer. Não o fim de um processo, mas o começo e o meio também. Ou senão, pelo menos os "momentos felizes" são a verdadeira felicidade. Nada de vida inteira, nem meses, nem anos. A felicidade só preenche pontos quase isolados: foi o seu aniversário de cinco anos, quando você sentou no seu primeiro carro, ou simplesmente o dia quando você encontrou o amor da sua vida.

O certo é que somos felizes no tempo e no espaço. E que só podemos ser felizes no tempo e no espaço em que existimos. Talvez não haja nada mais feliz que uma boa certezas, e se posso dizer que sou otimista (pelo menos em algo na vida), é nisto: tenho guardado cada vez mais fortemente a ideia de que seja lá o que for ser feliz, isto acontece no tempo presente, e no lugar em que se está. Uma vida inteira é muito pouco para viver o presente. Um segundo é desperdício demais, se já podemos viver bem em um centésimo, um milésimo dele.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

"MEMORIAL BÁRBARA DE ALENCAR" DO POETA DE MEIA-TIGELA


"Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas", do Poeta de Meia-Tigela, é pra se ler por inteiro e na ordem. Acho que meu maior erro foi ter lido pela primeira vez do jeito errado, como se fosse possível ler o romance pelo capítulo do meio. Agora foi que percebi com mais firmeza a forma desse cordel solar, de amarelo que mistura a cor da terra com a cor da gente da terra. Só assim para perceber rima e o estilo desafiando o leitor progressivamente a imaginar os limites da fôrma, ultrapassáveis. A luta em cada espaço do poema, poemas que falam dos heróis e de batalhas, de mitos e dos lugares onde nascem as bocas que alimentam esses mitos. São poemas-praça, onde se fazem forrós e comícios, onde a vida dá tapa na cara, mas também recebe.

Cada estória convida a imitar aqueles que agiram, formando acrósticos com seus nomes. E cada nome é como um mantra, que quer fazer o meditante obter a consciência de alguma coisa que se perdeu porque pensamos demais ou de menos. O Memorial, peça principal do livro, conta a história de uma Bárbara de Alencar valente e desafiadora, cuja revolta do clã (dos liberais Alencares contra o Império) é tão sua quanto de qualquer dos parentes do sexo masculino. A coragem de enfrentar até o fim a vida sem dignidade do cativeiro e depois a grave desilusão com a amizade daqueles que agora não a tratavam mais como iguais fazem Dona Bárbara uma intrigante personagem que, fiel a si mesma, luta pelo Brasil. No final das contas, fiel ao Brasil, luta por si mesma. Figura cuja face não foi eternizada, fez seu próprio autorretrato, com os atos e a porfia:


"Não teve a face retida

Ao menos delineada

Nenhum pobre esboço, nada

Que a fizesse conhecida.


(…)


Se esteve obscurecida

Ei-la agora revelada

Nítida, autorretratada

Nas dores de sua vida."

O livro também contem outros poemas, de mesma estirpe e estilo. Um dedicado ao cinema de Glauber Rocha, outro uma interessante adaptação para poema do curto e grosso Manual do Guerrilheiro de Carlos Marighella, e até mesmo um outro sobre o filósofo Farias Brito, que enfrenta com táticas de guerrilha os erros da Providência divina e humana. são alguns dos poemas. No final, dois poemas utópicos, um se trata da construção ideal da própria Utopia como um lugar, o outro da revelação apocalíptica da destruição do Ceará injusto, a vista de um outro melhor, levada a cabo pelos artistas e heróis do Estado.

O Poeta de Meia-Tigela usa como instrumento o modo de fazer poema da nossa gente, rimado e agreste, para tratar da temática ressequida e espinhosa da luta e da coragem de ser o que se é. Contra a injustiça, contra a miséria, a esperteza do guerrilheiro permite a coragem de lutar e de filosofar. Talvez como José de Alencar e os românticos, o Poeta quer fundar conscientemente o Ceará guerreiro em suas bases espirituais. Este novo Ceará só é possível com o material bem velho que se esconde no riso moleque tão farto por aqui, mas geralmente cínico e conservador. Quem ri assim quer rir sempre mais alto, por último e com a maioria, tentando encobrir a sagacidade dos corajosos Malazartes, que riem das mazelas, mas riem com Arte guerreira, que quer mudança.

domingo, 8 de maio de 2011

A TEORIA DO FUNIL (de cabeça pra baixo)


Uma das aulas que me causou mais impressão na vida foi uma que tive na 4ª série do fundamental. Pensando bem agora, talvez eu tivesse 11 anos na época. Da aula mesmo, em si, nada eu lembro, mas de uma pequena exposição da professora, dada em um momento de aparente desespero pela falta de atenção da infernal turminha em que me haviam colocado, recém-saído de um colégio bem menor e mais calmo. A baderna era geral, e a turba dos meus coleguinhas não dava sinal de parar. Eu, como sempre, nada falava, até porque não tinha vontade; se tivesse, não tinha com quem.



Essa professora, então, para tomar as rédeas da situação, resolveu, olha só, argumentar. E o seu argumento para calar a boca e prestar atenção na aula era a teoria do funil. Ganhando momentaneamente a atenção dos alunos, ela desenhou dois traços em direções convergentes, como as paredes de um funil. Antes que os traços se encontrassem, ela fez dois traços paralelos, formando um pequeno bico, de espessura muito fina. Apontando, então, a boca do funil, ela nos disse: "Vocês devem se concentrar, gente, porque a vida é como um funil". "Vocês agora estão aqui", marcando-nos com um riscado de giz. "Mas, depois, o funil vai diminuindo, e aí só vai conseguir o que quer quem conseguir passar pelo bico do funil". Enquanto falava, fez então uma seta apontando os privilegiados no biquinho fino do funil.



Eu tinha uma qualidade que meus outros colegas não tinham: eu sabia que uma pessoa mais velha poderia me ensinar alguma coisa. Pena que talvez a lição não fosse assim tão correta, ou que talvez eu não tenha lidado tão bem com ela. Lembro de como o desenho me impressionou. O começo do funil, larguíssimo, cabia todos os alunos da sala, do colégio inteiro, talvez do Ceará todo. Já o bico do funil era irremediavelmente pequeno. Tentei até pensar que não era tão pequeno assim. Achei até que tinha sido de alguma forma calculado para parecer de um tamanho mediano, para não fazer da tarefa de passar por lá algo impossível.



Não era difícil alimentar minha neurose. Muito estresse depois, e um percurso estudantil com mais vitória que derrotas, fico pensando em como vão meus ex-colegas, daquela sala. Certamente muito bem, obrigado. A maioria deles da classe média, ou classe média alta. Quem realmente conseguiu passar em vestibulares para escolas públicas? Talvez poucos da minha sala. Não tenho ideia do número, mas ao menos no Direito, não lembro de nenhum (o que já prova alguma coisa, já que quase todo mundo quer fazer Direito hoje em dia). Não ficaram, contudo, sem Faculdade. Só pagaram algo a mais. Quer saber? Nosso funil está de cabeça pra baixo. A seleção é na hora do nascimento. Depois é até difícil, vá lá. Mas a parte pior já passou.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O MONSTRO

Por quê? Esta é a mais frequente pergunta depois de tragédias como a de Realengo. São estes fatos que nos mostram nosso lado "humano", nossa compaixão, nosso sentimento gregário. E nada disso consegue nos responder por que tais coisas acontecem. Melhor querer saber por quem. Quem faria algo assim? Um monstro. E de onde nasce o monstro? Onde estão suas fotos de infância? Sorria, brincava? Falava da morte, de mulher, de futebol? Tinha amigos ou só inimigos?

Reunimos cada traço de informação que podemos e formulamos um mapa. Um tipo estranho de mapa, é verdade. Os sorrisos ou misérias de um homem servem para traçar um caminho que não nos leva a ele próprio, ao seu eu mais profundo. Este eu profundo do assassino, sua voz própria, não nos interessa mais, pois ele morreu. Suicidou-se, sua carne apodrece impunemente. Então para onde queremos que nos leve o mapa, a análise, a resposta que tanto buscamos? Obviamente a outros. Aos outros monstros, que se escondem sei lá onde, planejando quando vão matar criancinhas, estuprá-las, ou quem sabe matar aqueles colegas que não olhavam muito amigavelmente, ou que não davam bom dia.

É o acaso, contudo, que nos assusta. Um perfil criminológico não nos dará poderes para determinar os caminhos da vida e da morte, da justiça e da injustiça. A consciência do pouco que podemos fazer para evitar a injustiça no mundo, de uma forma geral, não combina com as nossas hipóteses educacionais, nem as metáforas de "cura" que delas decorrem. Nossos sermões tem pouco efeito sobre os "incuráveis", os "monstros". Os psiquiatras, que nos examinam o cérebro, não conseguem prever sequer a gênese dos que eles consideram loucos; muito pouco conseguem dizer sobre aqueles que não são loucos, mas são simplesmente, no sentido mais vulgar e simplificador do termo, maus.

E agora? É esta a verdadeira pergunta do acaso. É no mundo de hipóteses indetermináveis que a esperança de uma bela criança é abruptamente interrompida sem aviso, sem justiça, por um outro ser humano que desenvolve a necessidade (às vezes controlável) de matar. Eis o mundo do acaso; não é, porém, o mundo do destino, da fatalidade. O mundo não é um jogo de Deus: é uma tarefa incompleta. O assassino envolto na missão neurológica de matar foi, então, surpreendido pelo tiro certeiro de um policial militar. Este, por sua vez, foi avisado por uma criança baleada no rosto. Há liberdade, mas, infelizmente, muitas vezes tardia.

E a nós? O que cabe nesta corrente que ora se estende e que queremos, com nosso choro, pegar? Talvez, somente refletir, às vezes rezar. Talvez evitar alimentar, com nossa compaixão, os pensamentos mais fáceis, de mitificação de bandido e herói. Acima de tudo, não nos apegar aos métodos mágicos de controlar o incontrolável. Façamos do acaso um elemento a mais da nossa liberdade, e não nos prendamos à lamentação ou, pior, ao planejamento inútil e pretensioso.