segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

JÁ FUI INVENCÍVEL?


Um dos prováveis sinais de que se está ultrapassando o limiar de um novo tempo (ou “fase da vida”, como se houvesse uma ordem linear em marcha) é quando a atual impressão que temos do passado difere quase totalmente daquela de quando ali estávamos. Como o passado de que falo não ultrapassa duas décadas, tenho nítida lembrança do que realmente ocorreu e do que a partir daquilo refletia, coisa que, aliás, me acostumei a fazer desde muito cedo.

De início, pensava que a infância e a adolescência não me eram tão boas quanto deveriam, ou quanto eu merecia. Tantos os percalços e as frustrações que talvez houvesse o destino exagerado em me ensinar algo que já perdera o sentido. Hoje, tenho a sorte sazonal de rever algumas pessoas que passaram (o que, no inglês, é algo como morrer), de revisitar na memória uma página de um dos primeiros livros que eu li, a cor do céu quando chovia e o modo como os bueiros, no Benfica, àquela hora, regurgitavam o esgoto. Lembro-me agora de um beijo, de uma ambição, da minha caligrafia que piorava a cada ano escolar.

Já fui invencível? Me questiono, impressionado, crendo que sim. Pode ser isto uma tática complacência com o irreversível, protegendo-me para o futuro próximo, como uma multidão em fuga se desfaz do que pode pesar na viagem. Talvez. Mas se é tudo proteção ou supressão, por que a saudade? E por que se unem tão insistentemente os tormentos e as alegrias, como se fossem uma coisa só?

A explicação anterior, portanto, torna-se questionável. Um pai que ri quando o filho cai, ou quando chora por qualquer razão infantil, talvez sinta algo comparável: vivendo em dimensões diferentes, o filho chora porque aquilo lhe dói, mas o pai não chora, porque acha que já viveu aquilo e apenas acha, pois não lhe é permitido retornar e ser o que era. É como nos sonhos, ou nas visões, em que os mortos nos sorriem quando o tempo é de desespero.

terça-feira, 28 de julho de 2009

MCJOBS

Depois de muito tempo de jejum voluntário, tive a oportunidade de visitar e comer em uma lanchonete Mc Donald´s. O McChicken, meu preferido de todos os tempos, percebi, tinha mantido a mesma falta de gosto de sempre, com um preço diferente. O ambiente era o mesmo, e apesar de ser um lugar um tanto afastado da minha casa, tive a viva impressão de que já havia comido ali, talvez como alguém que vê um japonês e acha que já o vi antes.

Fato é que nada me impressionou tanto quanto os atendentes do McDonalds. Afinal, o que estou acostumado é com o amadorismo das coisas do Centro-Norte da cidade e do serviço público (especialmente, em nossa amada UFC), em que o modelo de atendimento ainda é o da bodega. Digo bodega, pois, naquela estrutura de serviços, o empregado é ao mesmo tempo dono. Então, ele não tem lá muito medo de ser dispensado. Além do mais, os clientes nunca o deixam por ele ter maltratado esse ou aquele comprador: o boicote de um bodegueiro azedo é antieconomico, é antiestético. Não existe uma equipe de RH, com metas e dinâmicas de grupo para motivar o bodegueiro. Se ele não vai com a sua cara, você que perde.

Se fosse pensar nas regras de ouro do bodegueiro público e privado, estas seriam: 1) você é pago, mas está fazendo um favor; 2) o cliente quase nunca tem razão, e, quando tem, isso não quer dizer nada; 3) repita "eu não posso fazer nada"; 4) se a "bodega" for uma repartição pública, nunca se esforce para solucionar o problema de outra pessoa, sempre tenha um ramal ou setor diferente para apontar; 5) o seu cliente é um ladrão, quer lhe enganar, lhe ludibriar e fazer você trabalhar mais do que devia; 6) você merece coisa melhor que trabalho que tem, está desperdiçando o seu potencial.

Me relacionando, sempre e diariamente, com pessoas que parecem seguir essa filosofia, me deparo, então, novamente, com os McJobs. Não é como os BobsJobs, ou os KalzonesJobs. É um pouco parecido sim: na parede pende o nome e a foto do funcionário do mês, todos estão uniformizados, etc. Mas não é isso. Quando fui para o caixa, o moço que me atendeu falou um texto tão decorado que quase virei as costas, ver se tinha um teleprompter atrás de mim. Pior ainda é que não escutava muito bem, então pedia para que ele repetisse, o que funcionou como se eu houvesse apertado um botão de um boneco falante.

Segui o protocolo à risca: no final, até depositei na caixinha moedas que ajudassem as crianças com câncer. No final, enfim, a recompensa, meu McChicken. Contudo, com uma cobertura diferente: a moça que me entregou a embalagem do hamburguer sorriu um sorriso largo e estranho. Era um sorriso violento, de quem passa 15 minutos no começo de cada jornada de trabalho, vendo se não tem nenhum pedaço de feijão no dente. O slogan "amo muito tudo isso" na dentadura.

Já pensou o que é sorrir por medo? Medo do desemprego. Ecce homo, eis o homem. Ou vocês acham que os bodegueiros de que falei são feitos de material diferente dos McEmpregados? A diferente é que uns estão numa estrutura pré-RH, ou que o RH é simplesmente uma salinha onde tiram o seu emprego, ou botam. Agora, e daqui pra frente, não. A coisa mudou: produtividade, autoconfiança, pro-atividade, mais medo ainda do que antes. Nos países de lingua inglesa, McJobs é uma gíria: significa emprego ruim, mal remunerado, desvalorizado, precário, típico do setor de serviços, do balcão que não é mais da bodega. Pergunto(-me): Será que o bom serviço que queremos, quando um servidor público ou o atendente de uma humilde lojinha nos olha como bosta, é essa McFalsidade, cujo molho especial é o temor da pobreza?

quinta-feira, 21 de maio de 2009

TENTATIVA


Hoje à tarde estive tentando me lembrar do conteúdo exato do inciso 2º do artigo 14 do Código Penal, o qual, agora sei, diz que a tentativa de um crime ocorre “quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Não estava, até então, muito preocupado com o que tenho ouvido falar do Direito Penal. Aliás, nem Locke estava muito em minha preocupação, quando pensei, ainda ofegante e com as pernas tremendo, que, para ele, posso matar um assaltante mesmo que ele somente queira de mim dinheiro ou um pedaço de pão, porque ele ao me assaltar me toma a liberdade: e quem me rouba a liberdade, todo o resto me pode tirar.

O fato é que tentaram, hoje, me assaltar. Na verdade, creio que me assaltaram, só não conseguiram tomar qualquer bem em minha posse. Isso porque eu corri. O pior: eu não só corri, como desesperadamente gritei. E gritei em um tom e força que eu somente havia gritado em sonhos, de uma forma que eu comumente não tenho consciência que posso gritar. E foi grito puro e seco, um “a” rouco e ininterrupto. Como está claro, não o fiz por vontade: foi o instinto que me chamou, ingenuamente.

Nem Locke, nem o Código. Me lembrei muito foi de Hobbes, que disse se orgulhar de ter sido o primeiro a fugir quando ameaçava eclodir a Guerra Civil na Inglaterra. Creio que ele não fuigiu, como eu, ridiculamente correndo e gritando, mas, como ele, eu fugi como um “homem de coragem feminina” (Capítulo XXI do Leviatã), ao qual é dado nada menos que o direito humano de ser fraco, de ser civil, de temer. Como Locke, Hobbes me dá a chance de matar o ladrão. Diferente de Locke, reconhece no ladrão a mesma humanidade desesperada e ofegante que há em mim, e diz que é ético que ele fuja, que ele mate e tudo o mais, se tentarem tirar dele a liberdade que ele tirou de mim. Ou sua vida.

Ocorre que ao contrário de outros utopistas, a Utopia hobbesiana se baseia ao mesmo tempo na esperança na razão humana e na desesperança quanto à natureza humana. O homem é fraco, se mija todo, corre e grita. Não todos é claro, mas ao menos o homem comum, ao qual não pode se pedir mais do que sua capacidade moral e física. É desse homem, contudo, que surge a vontade de sair da condição miserável de guerra e iniciar algo novo. Ruim que seja: mas melhor.

Talvez meu algoz não se trate de "homem comum". Talvez seja pessoa de coragem, ou mais um covarde. Um niilista, de certo. Mas, como sempre me faz pensar, imagino que juventude é essa nossa (minha e dele), que precisa enxergar toda sua fraqueza e decadência em momentos como este e, logo por isso, ter alguma esperança. Quiçá eu tenha sido somente motivo de riso dele, por hoje, ou vergonha, pelo fato de que ele tinha tudo para me roubar (exceto uma arma) e não conseguiu por circunstâncias alheias a sua vontade. E digo mais: alheias a minha também.

domingo, 10 de maio de 2009

O MÁXIMO


“O nosso lar/ desmoronou/ meu sabiá / meu violão”, o rádio cantava na sala da frente ecoando pelo longo corredor da minha adolescência. Hoje só falta um membro daquele conchavo que éramos nós.

Minha mãe por biologia se concentra em limpar um pequeno prato e, mirando o ralo, esconde o rosto. À mesa, sentada , minha mãe contratual, a ama, a empregada doméstica, extirpada de nós pela doença, como o câncer que extirpamos dela. Como o seu útero, extirpada.

Ela também olhava em direção a minha mãe e, somente por isso, ocultava o rosto. Suas expressões não eram importantes ali, mas Magritte era. Não é nada que só vejamos a nuca de quem amamos, privados de uma face, com medo de esquecê-la. Pior são eles, que não se vêem a si mesmos, por que a imagem do espelho lhes virou as costas, como a parede de azulejos que se fez opaca. E o máximo que fiz foi escrever um texto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

OLÁ, VOCÊ É EVANGÉLICO.


Alguém pára os olhos no meu rosto com um olhar analítico. Como se fosse o resultado de árduo pensar e repensar, a pessoa toma coragem e me pergunta, logo quando cessa o assunto (quase sempre burocrático): diz assim, de repente, “você (pausa) é evangélico”?

Pensando a respeito, lembro que hoje mesmo perguntei a um pernambucano: Você é daqui? O que quis dizer foi, na verdade, uma frase afirmativa: “você é pernambucano”. De nenhum tom ofensivo, perguntas retóricas como estas são dádivas sociais, coisa que nos põe, frente aos estranhos, no terreno seguro e comum do óbvio. Entretanto, nunca se sabe se o assunto puxado é o mais conveniente. Pior é que muitas vezes não é.

Não que eu me incomode com minha cara de crente. É algo como ser pernambucano. Ninguém tem culpa de ter sido parido em Pernambuco, assim como não tem culpa das escolhas estéticas que dão a este ou aquele a cara piedosa dos que acreditam, porque, afinal, nem tudo que se faz é em nome da aparência. Sou branco porque não gosto do sol e na praia, quando vou, me atenho mais ao mar e ao filtro solar (50). Que eu saiba, aliás, alguns evangélicos são até negros de nascença.

Longe está esta minha faceta “crente” de ser a pior que possuo. Para quem já ouviu insinuação de que padece de anemia, a bíblia sagrada é fardo leve. Significa, contudo, que reúno um número considerável daquilo que o vulgo (no que me incluo) pensa até sem querer dos crentes: pessoas confiáveis, mas não muito amigáveis, boazinhas e monótonas, comportadas e limitadas, moralistas e centradas.

Há ainda a possibilidade de meu interlocutor ser ele próprio crente, o que muda a afirmativa implícita para, especificamente, “somos crentes”.Vê-se que é um chamado à solidariedade, uma saudação amigável em um mundo majoritariamente hostil a quem tem valores morais quaisquer (mesmo que anti-cristãos). Que prazer o de reconhecer um igual! Ainda mais quando se trata de um desconhecido, que normalmente disfarça o que é, mas, naquele momento, torna-se um caminho para a verdade verdadeira, para o mundo ao mesmo tempo real e ideal!

Mesmo nesta última hipótese, porém, não se passa da barreira dos conceitos precipitados, mal formados. Talvez seja até mais espantoso, porque isto prova que um crente verdadeiro procura por seus semelhantes usando a mesmíssima ferramenta de pessoas que sequer suportam ouvir falar de música gospel, ou mesmo de Jesus Cristo.

Isto pode significar, na minha visão, que estes preconceitos são critérios suficientes e úteis para quase todos. Especialmente quem se aproveita da visão alheia sobre si próprio. No meu caso, já fui, naturalmente, beneficiado por isso e quase sempre notei o quão relevante para minha vitória foi minha miopia e epiderme evangélicas.

Temos caixas-pretas no lugar de cérebros, daí serem as aparências, como a de cordeiro, tão confiáveis, nem que sejam fantasias lupinas. Contudo, nem sempre é preciso balir, o que complica situação aparentemente simples. Livrar-se de clichês que repousam sobre uma aparência é tarefa muitas vezes frustrante. No meu caso, eu que não me dou tanta importância, posso dizer com alguma propriedade: para alguns sou uma ovelha rouca que rosna, late e late inutilmente ; para outros, um elefante branco. E carnívoro.