O fato de ter havido uma mulher no mundo que comia cabelos, tantos que punha em risco a própria vida, não poderia deixar de ser algo significante, até de uma coisa além de sua própria miséria pessoal. Associo injustamente a coitada ao caso bem mais grotesco de um homem que sofria (ou fazia sofrer) de canibalismo e que localizava o início da mania no hábito que tinha de, quando criança, matar passarinhos e, depois de torrá-los, comê-los.
Imagine o dia em que a mulher de que vos falo descobriu que podia comer os próprios cabelos. Era já uma senhora ou criança carente de alfabetos morais? Teria sido um dia de sol? Estava sozinha e isto lhe surgiu como uma dádiva? Contou para a sua melhor amiga? A amiga também provou do próprio cabelo?
Por extrapolação, poderia falar de muito mais que uma mulher comendo o próprio cabelo. Estamos falando aqui de rituais. E por que não localizar os mesmos mecanismos simbólicos do exemplo pitoresco nos atos simplórios de todos nós, que só comemos uns aos outros no sentido figurado? De certo que o canibal e alguém que come cabelos não é tão fiel representante da realidade da maioria dos seres humanos. Mas, meu deus, comer cabelos não é uma atividade humana? Toda ela cheia de humanidade?
É que nossa sociedade (a qual não tenho coragem de adjetivar com nenhum termo) não tem muitos rituais fielmente catalogados e considerados, até, como tais. Precisaríamos de uma raça de ETs esforçados e pacientes para fazer esse trabalho, de alguém que vivesse de um outro modo e não ignorasse totalmente a estranheza e tribalismo do que somos detrás das milhões de janelinhas ora acesas, ora apagadas, olhos da urbe.
Cortar o cabelo, tomando o mote de onde começamos, podia ser considerado o nosso ritual de iniciação em novas vidas, de manipulação do próprio corpo, estranho sobrevivente quiçá (e aqui lamento não citar nenhum estudo antropológico) da escuridão das cavernas ancestrais. Comê-lo, bem, seria apenas uma demonstração de como isto significa para todos nós, só que até o infinito.
Eu era loiro. Isto de perder a cor dos cabelos acontece com muita gente, pelo que ouvi falar. Talvez por não achar a Escandinávia, alguns olhos e cabelos cearenses escurecem. Disto retiro o que passo a relatar, a lenda pessoal e familiar em torno deste fato, criada por impressões da minha mãe, fundamentadas na matutice que nem ela acredita, mas que é bom sempre ter por perto.
Cortei o cabelo, segundo parece, com um homem de mão ruim, mão escurecedora de cabelos. A inveja que almejavam meus pais todos tivessem de mim somada à infeliz mão do cabelereiro me retiraram de um mundo de loirice eterna.
Não bastasse isto, aliás, era aquela a primeira vez que cortava o cabelo, as longas madeixas encaracoladas e douradas, que me davam um tom angelical de engordar os olhos. Anjos, porém, não tem sexo, e a androginia da minha aparência, na época, causava constrangimentos infantis nos meus adultos pais, daí a urgência da medida expurgadora de cachinhos.
Entrava, naquele momento, no mundo de masculinidade rarefeita dos meninos que deixaram de ser bebês. A ocasião mereceu foto. Minha mãe, tão cheia de datas, mas com minha mesma frágil memória, guardou aquele momento, e meus tantos outros ritos de passagem até quando nem eu mesmo sentia a diferença entre antes e depois deles. Certo é que, falando disso, me emociono, de alguma forma, e me lembro de como sou importante e faço parte do grande almanaque de superstições e historietas que constroem uma cidade.
E daí? Bem, vamos valorizar os pequenos gestos, invocadores das nossas origens mais símias e belas, ou vamos esperar que comam cabelos ou que nos comam, no mau sentido? O homem só funciona com mitologias, mesmo que ainda não as reconheça. Quantos, por falta de algo do gênero, não se perderam por aí, pobres índios sem pajés, banhando-se na chuva sem antes dançá-la?